Folha de S.Paulo08/07/2007 TENDÊNCIAS/DEBATES
A dor do preconceito e da discriminação-NILCÉA FREIRE
O caráter sexista da agressão a Sirlei é um traço mais intenso de uma violência naturalizada, banalizada e até mesmo autorizada. Decorrida mais de uma semana desde a covarde agressão a Sirlei, no Rio de Janeiro, a sucessão de novas informações descobertas pela investigação policial e apuração jornalística contribui para iluminar um traço fundamental desse episódio que andava oculto: a violência de gênero.Nos primeiros dias, a bestialidade que caracterizou a ação dos agressores associada à aparente gratuidade de tamanha violência despertou um sentimento de perplexidade que, com certeza, contribuiu para esconder um importante fator que fomentou aquela barbárie. A saber, a misoginia -segundo o "Aurélio", desprezo e/ou aversão a mulheres- professada pelo grupo de cinco agressores de Sirlei.Essa manifestação exacerbada de discriminação à mulher era o foco principal de uma comunidade do Orkut intitulada "É tudo vagabunda", freqüentada pelos algozes da trabalhadora doméstica carioca. Ali, julgando-se em território livre, a fúria discriminatória dos misóginos rapazes -embora nos faça lembrar dos violentos ataques homofóbicos- não tinha como alvo especial as prostitutas, mas as mulheres em geral. Na página da internet, pista rapidamente apagada por amigos dos réus, que confessaram o crime, mas tergiversaram sobre as razões, eles afirmavam em alto e bom som que, "toda vez que um homem tem problemas, é por causa de uma vagabunda".O curso das investigações policiais, com efeito, trouxe à baila não apenas casos até então desconhecidos de envolvimento do grupo com ataques a prostitutas mas também a uma manicure, a uma ex-frentista e a duas mulheres que saíam de um restaurante da Barra, pelo que se sabe até agora.Tudo isso serve como agravante à flagrante discriminação às mulheres em geral, e às prostitutas, em particular, contida na alegação dos agressores de que espancaram e roubaram Sirlei porque a imaginaram uma profissional do sexo. Ao contrário, esses fatos demonstram, cabalmente, que os estereótipos através dos quais o grupo enxerga as mulheres fomenta esse tipo de violência. Ademais, as próprias prostitutas se encarregaram de reagir. A Ong Davida, com a solidariedade da OAB-RJ (seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil), está movendo justa ação de danos morais por discriminação contra os cinco acusados.O caráter sexista da violência praticada pelo grupo de jovens não esclarece, de forma alguma, todas as indagações que estão postas por sociólogos, psiquiatras, educadores e especialistas em segurança pública, bem como por todos os cidadãos em geral, sobre as causas dessa violência. Mas é um componente evidente e tem uma importância significativa, justamente num momento em que toda a sociedade se solidariza com Sirlei, sem se dar conta de que esse é um traço exacerbado -e por isso repelido por todos- de uma violência naturalizada, banalizada e até mesmo autorizada.Parece excessivo, mas é exatamente isso: a violência exercida pelos homens contra as mulheres, no Brasil como em qualquer parte do mundo, é autorizada pela sociedade patriarcal. Segundo sua lógica, o espancamento de namoradas e esposas por seus companheiros é uma questão da vida privada, na qual o Estado não pode nem deve intervir. Vale lembrar que somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 "não existe mais hierarquia familiar", ou seja, a mulher não se subordina mais ao homem, são todos iguais.Todavia, passados quase 20 anos e malgrado tantas conquistas das mulheres brasileiras, a cultura patriarcal ainda está longe de ser substituída por uma cultura da igualdade de gênero. Diante de casos de violência doméstica contra mulheres, é comum que os comentários machistas predominem até mesmo sobre a natural rejeição ao ato de agressão. "Alguma ela fez" ou, na melhor das hipóteses, "melhor não tomar partido". Sem falar nos casos de estupro, quando, freqüentemente, se critica a sensualidade excessiva dos trajes das mulheres, responsabilizando-as e justificando o estuprador.Na vida real, trabalhadoras prostitutas ou domésticas são feitas da mesma matéria. Como na música do Chico "Umas e Outras", elas se cruzam "pela mesma rua olhando-se com a mesma dor". A dor do preconceito e da discriminação.
NILCÉA FREIRE , 55, médica, é ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Foi reitora da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) de 2000 a 2003.
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